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segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Conto da vida moderna

        Cada vez que se lembrava da infância, Flávia sabia que as comemorações de fim de ano viriam à tona. Ela se lembrava que nesta época, apesar das muitas impossibilidades financeiras, era possível perceber, como qualquer outra criança, o ar doce e solidário do Natal, e é claro, da decoração que o acompanhava.
        Naquela tarde, pensando nisso, enquanto tentava construir uma guirlanda com materiais disponíveis e com o "auxílio" das mãozinhas curiosas de seu filho, lembrou-se de que em sua infância, à rua Piauí, costumava arrancar grandes galhos de pinheiro e enfeitá-los à sua maneira e sem qualquer tipo de lógica, se é que todo este adorno possa sê-lo.
       Mas a questão era, quem vai pular o muro da caixa d'água da rua e cortar uma parte da árvore para todos? O mistério, o segredo, a dificuldade, a coragem, estas eram as engrenagens do movimento natalino daquela turma.

       No entanto, as datas em que tinham preparativos para a Ceia, não eram por si só, cheias de abundância financeira, mas havia ali, pessoas como animação e alegria de viver suficientes para levantar qualquer grupo para uma mega confraternização. Todos traziam o pouco que possuíam, e ao final, a mesa era farta pra todos. Essa fartura, pensava Flávia, era a força motriz para um ano que recomeçaria em breve.

      Enquanto se deixava levar por estes pensamentos, percebeu que havia em seu aparelho celular uma gama de notificações que pensava não ter pedido pra receber, mas que autorizara sem pestanejar ao baixar o dito aplicativo. Flávia estava sem tempo, sem perspectivas de concluir seus pensamentos e seus tiques artísticos (a guirlanda), e culpava o aparelho facilitador da vida moderna. Não bastasse a intromissão, viu que um dos posts era, na verdade, uma mensagem vazia e sem teor palpável que dizia, "Neste Natal, cuide de si, faça algo de que goste e faça um favor a si mesmo, risque as pessoas que não valorizam sua vontade...", e ela imediatamente pensou:

     - Ótimo, bendito seja o eu entre todos, benditas sejam as minhas vontades assim na terra como no céu! Afinal, quando foi que o Natal virou sinônimo de "tô nem aí pra ninguém?", "Só faço o que eu quero e excluo o que ou quem não concorda comigo?" e, pelo amor de Deus, "quando foi que resolvemos obedecer posts vazios como regra de conduta?"

     Continua...

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